quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Vidros sujos

Quando revolvo a terra do passado, os pés, da distância, cansados, na escuridão dos dias que se foram, para o nada que é a vida de todos, entrando na madrugada do tempo, passeando descalço na superfície do pátio, eu enxergo as pontas dos cacos de vidro e o veludo dos grãos de terra entre os dedos. J.A.

domingo, 18 de novembro de 2012

Jogos infantis

Era a época da neve, e depois dos seis meses de seca as nuvens pesadas não paravam de derramar carregamentos enormes de chuva solidificada por cima do Plano Piloto. Quem via de cima, de avião, como era o meu caso, se surpreendia com a beleza formada pelos desenhos dos fios pontilhados dos postes de luz na superfície branca, as geométricas formas que nasciam deste contraste e que somente serviam para ressaltar o cartesianismo dos seus construtores. Tudo branco, límpido, como as ideias claras e distintas dos arquitetos, planejadores e políticos que fazem nossa capital ser o que é. Há décadas que venho a Brasília, vindo do Recife, e sempre tento evitar a época da neve, em que o trânsito se torna infernal devido ao acúmulo de gelo cor de barro vermelho nas largas avenidas. Me incomoda sobretudo ver como sofre o povo, apesar de os nordestinos e mineiros já terem se adaptado ao clima desde a fundação de BSB por JK. Mas o frio me leva sempre a pensar nos pioneiros, nos candangos vindos do Nordeste em busca de melhorar de vida, e tendo que trocar o distante sertão, onde a seca perdura e sempre nevou pouco. Aquele era o meu caso, a recolher a última e demorada mala na esteira rolante já quase deserta, a recomeçar tudo, do nada, a vida vazia como um guardanapo de boteco sem coisa alguma escrita. Atravessando a faixa de pedestres, em busca de um táxi 3030, meu paletó em segundos ficou pontilhado do branco da neve espessa tão característica do nosso Cerrado. Tive arrepios na nuca já desacostumada. Sempre nevou pouco no Nordeste, mas das poucas vezes foi muito. Uma vez em Caruaru, quando criança, com meu pai e meus irmãos, visitamos a feira, caminhamos pelos labirintos de coisas para vender, comemos churrasco de bode e tiramos fotos como cangaceiros, com aqueles lindos capotes de couro. Criado em Recife, mas filho e neto de pernambucanos do sertão, lembro das histórias da vida no interior em épocas passadas, das brigas de família, dos assassinatos por um ou dois bodes roubados ou por uma pulaçãozinha de cerca que não deveria ter maiores consequencias - também a alegria dos sertanejos quando, depois de uma longa estiagem, finalmente, vinha a neve. Eu lembro bem do mato seco e frio, fechando meus olhos em dois riscos, com a dolorida lembrança da mulher e os filhos que eu deixei por, segundo Marisa, pura infantilidade - não esqueço das cabras só com a cabeça de fora, nos campos brancos de minha infância. Da janela do carro eu vi se aproximar a casa baixa da pensão na W3 com seu telhado quase sucumbindo ao acúmulo de gelo... Paguei o táxi, puxei as malas fazendo um trilho no branco até a porta que abriu em uma fresta. Em Caruaru, também estivemos na casa de mestre Vitalino e nos emocionamos com a simplicidade com que ele produzia seus bonecos só com neve. Tinha uma romazeira no pátio, mas ela estava seca, toda branca, e do forno de barro do Mestre só o que se podia enxergar era parte de cima da cúpula arredondada. O resto o gelo tinha coberto tudo, dos calanguinhos às galinhas, duras, mortas, que encontramos a um canto do galpão, como se tivessem tentado se esconder. Sei que lá, de vez em quando a neve volta, só que nunca mais com tanta força, como quando antes fazíamos bolinhas pra acertar na cabeça dos mandacarus com seus braços espinhentos abertos pra nós. Sim, como o mundo está mudado! Agora que neva pouco é que vemos. O sertão sob a neve é um lugar que precisa ser conhecido por todo o brasileiro, pela força que tem em arrasar toda aquela riqueza com sua miséria, com sua tristeza branca. J.A.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Prato de gulash

Num quadro no Museu da Bratislava, Eslováquia, a mulher vê uma mesa de jantar vazia numa casa simples, provavelmente do interior. Está servido um gulash ralo com pão seco. Mais nada. Num primeiro momento, não havia visto, mas um homem, vestido com um capote preto, ocupa quase um terço da tela, à direita. Pareceu a ela que o homem estivesse mastigando pensamentos muito duros, ou estivesse, simplesmente, morto. A mulher agora vê um jarro marrom, provavelmente de barro, um cesto com frutas, um pequeno pote de manteiga e uma faca, no meio de uma poça rubra que foi se formando na toalha. Ela virou o olhar para a janela aberta. O vermelho escuro de carnes desfiadas do gulash manchava o branco da neve. J.A.

domingo, 28 de outubro de 2012

Auto-retrato com neve

Fiz a lápis o esboço da minha cabeça, até resultar um homem de cabelos ralos e com barba apenas no queixo, de olhos arregalados e cheio de bolsas, como os de um cavalo. A boca eu representei levemente aberta. Pareceu uma foto em que os movimentos são congelados sempre antes ou depois do tempo. Quis evitar a ilusão da boca fechada, a mentira da boca fechada. Depois, fui escondendo este mesmo esboço aos poucos com um óleo grosso, em pinceladas que ora me desfiguravam, ora traziam os pelos de uma orelha ou uma ruga da testa para a tela. Optei por um branco pálido e levemente bege em alguns pontos da face, a sugerir a cor da pele pouco exposta ao sol. Dei expressão às rugas abaixo dos lábios com mais força do que a todos os outros traços, porque queria que resultassem graves, ou desenhadas pelo escândalo. Atrás de mim fiz surgir um campo com um caminho curvo e galhos secos brotando da neve. Ao pintar, eu tinha medo que um deles se enfiasse em meu rosto. E por isso, eu já ia usar as mãos para proteger-me, antes que a cerda do pincel se cravasse torta no olho esquerdo. A pele do rosto encrespou-se de calor por causa de uma tinta grossa a correr-me pelo queixo até a barba. Senti vergonha e tentei, em vão, que os pingos vermelhos não sujassem a neve. A cada pincelada parecia menos eu, mas era mais eu.

Saturno no laranjal

Nosso pai era um exímio descascador de laranjas. Com velocidade e precisão, ele deslizava a faca afiada entre o amarelo da casca e o branco do bagaço, sem nunca feri-las ao ponto de aparecer alguma parte da polpa. O que nos encantava era como se formava uma espiral comprida, que ia descendo de sua mão a cada volta da lâmina afiada e que só terminava quando a tampinha da outra ponta também estava feita. A casca, então, despencava, dali, inteira para a grama. A gente se acotovelava pra chegar primeiro e era sempre eu, o mais velho, que as pegava antes, para brincar. Pareciam, à minha imaginação, pequenos móbiles ou baralhos de mágico que se abriam em sanfoninhas perfumadas. De tal maneira era feito aquilo que nós - que nunca conseguíamos nem uma coisa nem outra, ou seja, nem retirar a casca intacta nem fazê-lo sem esfolar - e consequentemente sangrar - a laranja aqui e ali, ficávamos de boca aberta com a habilidade dele. Nosso pai fazia isso em silêncio. Uma, três, cinco vezes, embaixo da laranjeira. Às vezes se esticava todo e puxava um galho para baixo para pegar as mais maduras. Nós três ficávamos ansiosos querendo saber para quem ele daria, primeiro, a laranja tão habilmente descascada. Mas ele sempre nos desapontava. Não digo que apenas no começo ele tenha gerado esse sentimento e que depois a gente tenha se acostumado. Nós sentávamos a uma pequena distância a vê-lo comendo, sozinho, cada uma daquelas laranjas. Com a já referida habilidade, nosso pai chupava-as inteiras e jogava fora os bagaços intactos, como se fossem cabeças de crianças murchas. J.A.

O silêncio dos quadros

Cada vez que eu entro em um museu e presto atenção nos quadros o que mais me impressiona, além das formas e das cores, é o silêncio deles. O mundo sem palavras dos quadros, mesmo sempre um mundo muito mais eloquente que o mundo real. Imediatamente abaixo da realidade, expressivo em suas composições de chaminés, marias-fumaças entrando na gare cheia de neve, campos de flores amarelas, mulher andando ao sol sob uma sombrinha, navio deixando o porto, um beijo longo e retorcido. E o silêncio. A substância dos quadros não é a cor, nem a forma, que mudam sempre de um para outro, mas o silêncio que em todos é o mesmo, absolutamente o mesmo – foi o que aprendi.

Olho de robô

Steven Pinker diz, em Como a Mente Funciona, que um robô nunca vê, ao contrário do que querem nos fazer crer alguns filmes por aí. Na verdade, nas histórias de ficção científica, o efeito correspondente ao olhar das máquinas é produzido com lentes grande-angulares ou retículas de fios cruzados que eles colocam na tela. Mas essas imagens, supostamente as visões dos robôs, que vemos na tevê, aparecem apenas para nós, humanos, que já possuímos um olho e um cérebro funcionando, e que podemos captá-las. Nas entranhas de fios de um robô, não se vê nada a não ser uma série de números, cada um correspondendo a um brilho entre milhões de retalhos mais escuros ou menos. Mas talvez seja tão impossível que os robôs enxerguem até mesmo isso quanto, ao tentar abrir alguém vivo de verdade, vermos sua alma lá dentro. Os números, afinal, são apenas descargas eletrônicas. Era isso o que eu tentava dizer a XY8, àquela noite agradável de novembro, num bar da Rua da República... - Você me vê, mas não me vê, entende, XY? Ele não respondeu, acho que um tanto magoado. Olhou-me de um jeito amargo e ergueu o braço para pedir outra Polar. A noite de primavera estava agradável para uma conversa. As mesas, na rua da República, apinhadas de gente que sorria, bebia e trocava olhares com os habitantes das ilhas de metal mais próximas. Retomei, ante o bocejo de XY8: – A questão é que, na verdade, vocês são completamente cegos, por mais que possam identificar formas e movimentos em seus mais delicados detalhes, com mais precisão até do que nós... Eu queria dizer a ele que, mesmo vendo, eles não vêem. Mais do que isso. Não enxergam nem mesmo os tais números que existem dentro de suas cabeças! Como veriam, se não existe nada entre eles e as coisas? E isso pelo simples fato de que eles, afinal, também são coisas. Se nós, os humanos, atribuímos a objetos de fios e placas de metal algumas sensações que temos, só pode ser por certo desespero, angústia por estarmos sós no universo. - Não acha? - concluí. Ele concordou, com a cabeça. Ainda mudo, no entanto, enfiou mais três botõezinhos de amendoim na boca e limpou as cascas que caíram sobre o colo. Tomei novo gole de Polar. Então, continuei, mudando um pouco o foco do assunto, que não parecia ser muito de seu agrado. E eu sei quando começo a ser chato. – Você, que gosta de poesia, XY. Penso que pelo menos um tipo de poesia não passa, tal qual a filosofia, de uma técnica retórica de se referir às evidências de modo avesso, de maneira reversa, cuja principal ilusão é ver dotadas de vida coisas que não o são. E a filosofia tem esse mesmo desejo, mas não a mesma coragem. Foi então que XY8 interrompeu, com sua voz rouca, pausada. Fiquei feliz por ver que ele queria falar: – Máquinas e pontes, estradas e janelas, rios e estrelas, fábricas e calçadas, muitas vezes vi-as se moverem por meio de figuras de linguagem, que imaginei serem o centro da poesia. Confesso que, por pouco, a vaidade não me fez ver resolvidos todos os enigmas, via literatura, não fosse o problema crucial de que as palavras, infelizmente, não são as coisas. Que tudo o que se fala é apenas aquilo que se fala, que não há relação do que é dito com os objetos, como imagina, por exemplo, a iludida filosofia. Não é isso o que queria dizer? – Exatamente. Exatamente. E nessas mesmas palavras...  Não te parece, então – ele retomou - que o problema de vocês seja o inverso do nosso, o que os envolve em idêntica cegueira? - assinalou. Acrescentou que, para ele, éramos apenas sujeitos e que nossa ponte com o objeto estava quebrada. Assim, tudo o que olhamos levaría-nos, por isso, a inevitáveis ilusões. Também disse que, se só podemos enxergar por dentro dos próprios olhos, como, desse modo, poderíamos saber se chegamos, de fato, às coisas reais lá fora? E deu um exemplo: as cores... Poderíamos, nós humanos, dizer que elas são o que são fora de nós? Não é possível ter certeza. E se os robôs vêm números ou nem mesmo isso, parece que nós vemos algo que está apenas dentro da gente, de nossa carne, de nossos nervos, mas não nas coisas. Seríamos, assim, tão cegos quanto os robôs. E desferiu o golpe final:  Para nós só existem coisas, para vocês, só vocês, Guilherme. Meu amigo robô é, de fato, uma grande companhia. Fantasma cibernético da Cidade Baixa, encontro-o quase sempre, rodando de bar em bar pelas belas ruas do bairro, à procura de bons lugares para beber, conversar e se chatear o mínimo possível. E há lugares realmente legais. A República já foi uma deles, a Lima e Silva, aquela coisa, que vai se transformando num mar de gente de gosto cada vez mais duvidoso a cada ano que passa. Mas há ruazinhas e bares escondidos, legais e distantes da turba. De vez em quando tem shows de jazz, inclusive, mas o interessante, mesmo, é a confluência das esquinas mais estranhas de Porto Alegre. Na frente do Opinião, a José do Patrocínio junta, um de frente para outro, bares de metaleiros, surfistas, playboys, pagodeiros, roqueiros etc, num espaço de menos de 100 metros. Um mergulho ou outro por ali é interessante, mas nada mais que uma boa meia hora e já se começa a sentir o cheiro da puerilidade, do prosaísmo que exala mais forte que o das bebidas baratas. Entretanto, como costuma acontecer, eu e XY8 já tínhamos pago a conta e perambulado por outros bares, tentando reconhecer algum amigo no meio da massa. Acabamos pulando como dois sapos naquele ambiente, esperando que um bar de boa black music com algumas das pessoas mais interessantes da cidade abrisse. No boteco da frente, continuei a conversa, já em outro tema, como sempre. Perguntei a ele se, em sua opinião, o artista pode pensar não apenas por sínteses e analogias, mas também por análise, como seus colegas cientistas e filósofos. Respondeu-me que achava que não, que a análise só pode dar como resultado o que já está contido no objeto, o que, como todos sabem, impossibilita qualquer descoberta de algo que esteja fora dele. - O que um poeta iria querer com isso? - acrescentou. – Exato! A síntese, ao contrário, pode fazer surgir algo que não estava contido completamente na coisa analisada. Os poetas têm a metáfora como instrumento. Pela comparação, pelo transporte, pelas relações estranhas entre objetos e palavras chegam, às vezes, a esse resultado a que chamam de arte. XY8 comentou: – Como sempre queres dizer que as relações analíticas são mais prosaicas que as sintéticas, e que eu como produto da ciência não sou poesia, como tu, que és humano... - Ora, isso não é óbvio, XY? Mas eu não falava disso. Queria dizer que a arte reside exatamente em poder fazer com símbolos um fio imaginário entre os objetos. Disse a ele que não me parece haver outra forma de enxergar o poético do que renunciando, então, à comprometida análise, e saltando, no escuro, à espera de que exista algo entre as coisas, que só pode ser “pego”, “visto”, “ouvido”, “sentido” por essa ponte frágil. Acrescentei que a poesia me parecia um instrumento como teia de aranha, a agarrar o homem invisível, o universo invisível que supostamente existe entre os objetos. Talvez alguém na universidade pudesse retucar se isso não se trata de uma irreverente metafísica, de um simples método de investigação que não consegue se livrar do estranho, do resíduo, dos ruídos e até das ilusões. - Uma lógica precária? - ele perguntou. - É. Mas este não compreenderia a aventura da arte como, também ela, um salto de fé no abismo entre as coisas. E os poetas não se dariam por contentes com uma explicação destas, com tão pouco, obviamente. Eles querem mais, querem ser deuses. – Não percebes – ele sorriu – que é exatamente assim que, com nossa ilusão, com nossa cegueira, enxergamos, nós, os robôs? A arte é um fio de aço estendido no precipício, sim – ele sublinhou - O artista está ali em cima. No íntimo não nega que não vê nada entre o vazio, nem mesmo a corda a seus pés, e que só o segura o medo de cair e não pegar nada. Ele é como nós, que enxergamos dígitos, talvez nem isso. Mas uma fé o sustenta para que não caia no vazio, lá embaixo. O artista é o que anda sobre as águas, o que dá passos no ar, o que, equilibrando-se sabe-se lá onde, faz aquilo funcionar: a ponte invisível entre as coisas, por onde ele, então, dá mais um passo, e outro e outro, até chegar, são, mas nunca salvo, do outro lado. Pensei naquilo, atentando para a maneira como seus olhos brilhavam. Pareciam os de um profeta, um louco, ou mesmo um místico iludido por sua própria arte de ilusionista... Olhos de robô, que não vêem nada, nada, os de XY8... Deu-me uma pena.

sábado, 27 de outubro de 2012

Yuri F. Rodriguez, escritor caído

Yuri F. Rodriguez foi um tipo de escritor caído, espetáculo anacrônico do romantismo tardio e que desaparece, pra sempre, sem deixar sementes - só as gotas espalhadas pela terra cheia de areia e pedras, de um pampa deserto. Culminou, com seu esgotamento, um caminho. E por quê? Bom, é o que todos sabem: a cada dia que passa, nós sabemos que eles, os escritores, são mais ridículos, cada vez mais farsantes, à medida que o mundo anda, em sua correria, não digo dando as costas às suas já mirradas ejaculações - para evitar uma imagem excessivamente sexual – mas num nem-aí, que faz do dasein um pouco mais que um porra-louca das florestas encantadas da Alemanha. “O ser-aí é só o nem-aí, na verdade, Astronauta. Não existe mais qualquer seriedade neste mundo” – Yuri reclamava - “E Heidegger, Sartre, Ortega e Unamuno são pura e simplesmente uns imbecis. A verdade é o riso do entrevistado antes de levantar da poltrona para cantar mais um hit no playback estimulando o auditório com palmas acima da cabeça. Um click na tevê e lá no outro canal tem uma família feliz no novo carro espaçoso. Mais um e aparece a apresentadora de tevê comentando o lançamento de um magnífico antirrugas. E se desliga a tevê fica ainda aquela sensação, a vertigem da velocidade que esparrama por cima de tudo o creme da impessoalidade, fragmentada, perturbadora, infértil, impossibilitando qualquer leitura mais demorada, mais atenta, qualquer mínima exigência, Astronauta”. Por que Yuri Rodriguez foi, assim como eles, tão imbecil? Por que foi um merda? Por que não calou a boca, como todo mundo e, assim, continuaria vivo? Porque não dava. Ele fez o caminho contrário. Não correu pra lá, pra onde todos foram em gritinhos animados, mas pra cá, pra dentro, mesmo, cavando, mudo, com as próprias unhas, até chegar no fundo frio do poço escuro de si mesmo, onde caiu. E sem ter como voltar. Ali, só tinha a sua escrita, a que se achava com algum poder para contrapor-se ao universo de balbúrdias, a que se quis abolidora da cor local, a que tentava instalar a romântica petulância do gris sobre o inferno das cores da América do Sul. Em vão. Tentou fazer o mesmo com a linguagem. Escrever para além dela, tendo que contar com ela, mas não sem a relutante consciência de que a linguagem seja, talvez, a única inimiga da literatura, e que só com a construção de uma espécie de clareira em sua natural opacidade é que se consegue enxergar o que são as coisas – ingênua petulância, a mais doce de todas a vivida por Yuri, assassinado por este mundo de porcos. Ele construiu lentes para melhor enxergar isso tudo e se opôs à farsa dos adornos desnecessários e infrutíferos, na busca das pequenas e únicas verdades. Quem quereria alguma coisa com isso? Obviamente que há outros imbecis como Yuri. Também eles nasceram em lugares um tanto improváveis, em ambientes pouco propícios para o cultivo da literatura, como é o caso do Pampa. A úmida e sonora amazônia brasileira e colombiana, as grandes metrópoles invisíveis como São Paulo ou Belo Horizonte, a mais que vista Nova York, os frios e desertos altiplanos da Bolívia, os quentes e superpopulosos desertos mexicanos, o alegre joga-as-mãozinhas-pra-cima-bate-na-palma-da-mão do litoral brasileiro, as infinitas ondas do mar encrespado e pétreo da cordilheira dos Andes, os arredores barrentos e escuros da Europa do Leste, a inatingível estepe sul-africana, habitada por leões, por guepardos e obviamente por escritores. E até mesmo a Austrália, tão imprópria para a literatura por suas promessas sempre renovadas de novas aventuras. E tantos já tinham morrido antes dele, tantos já hoje são apenas fotos de escritores brasileiros, chineses, argentinos, árabes, japoneses, penduradas em livrarias e cafés em Buenos Aires e São Francisco, em Pequim ou Rio de Janeiro, santos de uma religião já quase extinta, como bem queria o genial Thomas Bernardt, também morto. Gente como Yuri, cujas idéias serão fósseis desencavados por cientistas e uma pequena porção de leitores amantes de um passado recente e, talvez por isso mesmo, até mais passado do que o mais distante, da ingrata humanidade. Deles, mais nada sobra, a não ser pequenas e privadas lembranças de cada vez menos leitores sem força alguma para se impor a um mundo que soterra a todos com a frieza anestésica de sua realidade, aterradora para a delicadeza das palavras. O que Yuri fez foi muito mais que a louca revolução pessoal contra esta violência. Ao catar, na multidão, com paciência de garimpeiro, aqueles exemplares, para um acerto de contas estético, a faxina espiritual necessária, a violência reparadora de que este planeta tanto necessitou, ele não fez mais do que a única coisa possível via literatura: a negação do mundo. Para isso, teve, evidentemente, um método. Não bateu ao acaso, tal qual um desesperado lutador de rua como pode parecer ao observador desavisado. Foram ações de cirurgião e que tiveram como fim não a violência, mas esta o meio para a educação impossível da multidão de almas errantes de seu inferno pessoal. Esse é que foi seu único erro, evidentemente: acreditar que seria possível. Nos últimos anos, já quase não escrevia mais. A última notícia sobre um livro seu – uma nota sem qualquer repercussão na Zero Hora - já tinha mais de quatro anos. Mesmo com o pequeno sucesso alcançado tempos atrás, o que com certeza o enterrará e fará de seu apartamento mais um dos pontos turísticos literários da nossa capital, ao lado do caminho de tantos grandes escritores. Foi assim, pobre desse jeito, em Buenos Aires, com a Plazoleta Cortázar ou sua imagem, como um santo desenhado na estação de Banfield. Ou com a rua Jorge Luiz Borges e o centro cultural que leva seu nome. Foi um abandono da ética. Foi uma desistência do real. Foi a negação da objetividade, que seguiram-se ao fracasso do caminho que ele escolheu. Certamente que já estava mais para cá do que pra lá, mas na noite que se foi, ele completou a queda e se estatelou na terra dura do fundo. Lá dentro, ria soluçante um fantasma. Não o do simples escritor, mas o do escritor megalomaníaco, o idiota que quis colocar os pingos nos is, para restituir, com sua arte, uma racionalidade perdida, talvez pra sempre.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Meia dúzia de caramujos

- Où y a-t-il ici une discothèque? - Monsieur! - Porquoi? Porquoi? Ah! Ah! Ah! - J'aimerais un diverstissement. - Venha. Entre rápido, antes que ela veja. Anda, Magra. - Calma, já estou indo! Já disse que não consigo correr com esses sapatos... - Fale baixo. Aqui, no balcão... O que você quer beber? - Nada... Não: uma cerveja. - Diverstissement! Diverstissement! U-la-la! - Deux bières, s'il vous plaît! - O que você acha que pode acontecer, Magra? É só ficar na sua que tudo vai sair bem. Já disse que vou resolver... Você precisa ter calma. Agora me conte: o que você fez com os caramujos? - Monsieur! - Yes, yes... - Merci. - Temos que ir embora de uma vez, Carlos. Vou hoje, mesmo. Eu juro! Não quero ficar mais um minuto, aqui. Pô, em Paris! E você me prometeu que teríamos uma semana tranqüila, depois de tanto tempo sozinha... Mas, como ela descobriu? Você só pode ter deixado algum furo, Carlos, lá em Goiânia. - Magra.. Quero saber dos caramujos. Se ela veio até aqui é porque descobriu. Onde estão os caramujos!? - Place Saint-John Perse, Les Halles, u-la-la. - Estão lá em cima, na mala, em cima da cama. - Tá louca? - Ia dar um jeito nisso agorinha mesmo, quando ela chegou. - Merda! - Eu estava esperando você que, pra variar, não aparecia nunca. Onde é que andava? - Estava dando uns telefonemas pra ver se resolvo tudo junto... Agora vai ter que ser assim mesmo... - Pois eu fiquei de saco cheio de esperar lá em cima e resolvi dar uma descida. Foi minha sorte. Olho pro balcão e tá lá ela. - Certo que ela não te viu? - Où sommes-nous? Où sommes-nous? - Não, não me viu. Perguntou pelo seu quarto, para o rapaz do balcão que, sem entender, tentava, acalmá-la. Minha sorte é que aquela língua conhecida me chamou a atenção. - Quel? - Ahm, Heineken. - Oui. - E o que ela falou? - Não sei direito. Voltei pra perto do elevador e fiquei lá. Ouvi ela perguntar pelo seu nome. Chamou você de ladrão, de picareta. E eu de vagabunda... Fiquei uns bons cinco minutos esperando ali depois de ela sair... Mas, como é que ela descobriu que vínhamos para cá e justamente para este hotel? - Eu... disse que estaria em Paris pra uma feira de couro e calçado, que realmente está acontecendo aqui perto. Ela deve ter descoberto e procurou o endereço com o pessoal do escritório... Só pode ser isso. - Carlos. Escute aqui: quando é que nós vamos poder cair fora, hem? Até quando eu vou ter que me esconder? Há dois anos! Nunca que vai resolver isso... Eu não quero mais saber desta situação... - Magra. Agora, com mais essa leva de caramujos, vou poder resolver tudo. Calma. Só que ela não podia ter descoberto. Não agora! - Olha, já decidiu como vai ser? O Daniel? - É! O Daniel. Pensei melhor, enquanto esperava você chegar... Mas vamos ter que dar uma parte da grana pra que ele não abra a boca... Quis quase 40% de tudo. Ofereci 30%. Fechamos em 35%. - 35%!? Um punhado de caramujos! - Mas se não for ele, ele nos entrega, é claro. Já sabe das outras... Então, amanhã à tarde, às 15h, o Daniel vai até o quarto da Silvia. Aparentemente será um ladrão, que vai matá-la para roubar dois caramujos... - Idiots. - Oui. - Eu quero a sua mulher morta, Carlos. Não importa como... E logo... Eu quero viver em paz com você, só isso. - Tróis bière, sil vous plaît. - Deixa comigo. Por dois caramujos... Então, ela também veio atrás dos caramujos! Aqueles lindos caramujos vermelhos e brilhantes... - Do you have red vine, monsieur? - Crôque madame, please. - Carlos... Tem certeza que ninguém está entendendo o que estamos conversando? - Não se preocupe, muito dificilmente alguém aqui entende português. Fica fria. Quanto ao hotel... Vou ter que ver outro. Dou um jeito nas suas coisas e, paciência, o que podemos fazer? Despacho as malas pra Zurique... Amanhã, quando tudo estiver acertado, eu vou atrás. - Deux bière, monsieur. - Sim, mas cuidado com os caramujos. - Deixa... Tranqüila... ...comigo... Do que adiantou todos esses anos como uma sovina?... ...sem gastar aquilo tudo... ...matá-la. - Você viu, Carlos, este cara aqui no balcão? - Quem? - Aqui. A toda hora ele parece olhar pra gente. Estou com medo... Meu Deus, chegou a me dar um arrepio. Será que não está entendendo o que a gente fala? O jeito que nos olha... Parece até que vai dizer alguma coisa a qualquer momento. - Deixe disso, Magra. Ele... ...na dele, fumando, bebendo.... chopinho. Em todos os casos, vamos embora... Paguei minha conta e levantei-me a tempo de vê-la saindo. O vento esvoaçou seus cabelos pretos, lindos, quando o garçom escancarou a porta. Através do vidro, vi o homem fazer sinal para um táxi e beijá-la rápido, com lábios que pareciam moles de preocupação. Ela acomodou-se no carro e puxou o casaco antes de fechar a porta. Quando deu a volta em direção ao rio, ele acendeu um cigarro e baforou contra a luz uma fumaça grossa. Assim, ele tomou, a pé, a rue Saint-Lazare. A temperatura forçou-me a levantar a gola do capote. Por duas quadras eu o segui, um tanto atrás, às vezes incomodado por seus passos lentos demais, de quem, ao que parecia, ainda precisava se decidir por algo. Eu já sabia bem o que queria: uma meia-dúzia de caramujos e o telefone da tal da Magra, na Suíça. Ou contaria tudo o que tinha ouvido à polícia. Que sorte! Com a crise, eu já estava decidido a desistir da Europa e voltar para São Paulo! Dois anos enfiado embaixo da terra, como uma toupeira tocando nos túneis do metrô. E nada. O hotel ficava em frente à gare Saint-Lazare, no bairro da Ópera, e eu caminhava devagar para evitar produzir a cada passo qualquer barulho. No que percebi para onde ia, apressei-me. Ainda ouvi o rangido da porta de vidro se fechando antes de ele chegar ao balcão. Evitei que ela batesse e no momento em que ele pegava a chave, toquei-o no ombro... Ele virou-se gelado como se visse um fantasma. (Jéferson Assumção)