Literatura P2P
Blog de literatura Peer to Peer, P2P, com contos e poemas de Jéferson Assumção
sábado, 11 de julho de 2015
Baixe aqui O Mundo das Alternativas - Pequeno Dicionário Para Uma Globalização Solidária
terça-feira, 5 de agosto de 2014
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Vidros sujos
Quando revolvo a terra do passado,
os pés, da distância, cansados,
na escuridão dos dias que se foram,
para o nada que é a vida de todos,
entrando na madrugada do tempo,
passeando descalço na superfície do pátio,
eu enxergo as pontas dos cacos de vidro
e o veludo dos grãos de terra entre os dedos.
J.A.
domingo, 18 de novembro de 2012
Jogos infantis
Era a época da neve, e depois dos seis meses de seca as nuvens pesadas não paravam de derramar carregamentos enormes de chuva solidificada por cima do Plano Piloto. Quem via de cima, de avião, como era o meu caso, se surpreendia com a beleza formada pelos desenhos dos fios pontilhados dos postes de luz na superfície branca, as geométricas formas que nasciam deste contraste e que somente serviam para ressaltar o cartesianismo dos seus construtores.
Tudo branco, límpido, como as ideias claras e distintas dos arquitetos, planejadores e políticos que fazem nossa capital ser o que é. Há décadas que venho a Brasília, vindo do Recife, e sempre tento evitar a época da neve, em que o trânsito se torna infernal devido ao acúmulo de gelo cor de barro vermelho nas largas avenidas. Me incomoda sobretudo ver como sofre o povo, apesar de os nordestinos e mineiros já terem se adaptado ao clima desde a fundação de BSB por JK. Mas o frio me leva sempre a pensar nos pioneiros, nos candangos vindos do Nordeste em busca de melhorar de vida, e tendo que trocar o distante sertão, onde a seca perdura e sempre nevou pouco.
Aquele era o meu caso, a recolher a última e demorada mala na esteira rolante já quase deserta, a recomeçar tudo, do nada, a vida vazia como um guardanapo de boteco sem coisa alguma escrita. Atravessando a faixa de pedestres, em busca de um táxi 3030, meu paletó em segundos ficou pontilhado do branco da neve espessa tão característica do nosso Cerrado. Tive arrepios na nuca já desacostumada.
Sempre nevou pouco no Nordeste, mas das poucas vezes foi muito.
Uma vez em Caruaru, quando criança, com meu pai e meus irmãos, visitamos a feira, caminhamos pelos labirintos de coisas para vender, comemos churrasco de bode e tiramos fotos como cangaceiros, com aqueles lindos capotes de couro. Criado em Recife, mas filho e neto de pernambucanos do sertão, lembro das histórias da vida no interior em épocas passadas, das brigas de família, dos assassinatos por um ou dois bodes roubados ou por uma pulaçãozinha de cerca que não deveria ter maiores consequencias - também a alegria dos sertanejos quando, depois de uma longa estiagem, finalmente, vinha a neve. Eu lembro bem do mato seco e frio, fechando meus olhos em dois riscos, com a dolorida lembrança da mulher e os filhos que eu deixei por, segundo Marisa, pura infantilidade - não esqueço das cabras só com a cabeça de fora, nos campos brancos de minha infância.
Da janela do carro eu vi se aproximar a casa baixa da pensão na W3 com seu telhado quase sucumbindo ao acúmulo de gelo... Paguei o táxi, puxei as malas fazendo um trilho no branco até a porta que abriu em uma fresta.
Em Caruaru, também estivemos na casa de mestre Vitalino e nos emocionamos com a simplicidade com que ele produzia seus bonecos só com neve. Tinha uma romazeira no pátio, mas ela estava seca, toda branca, e do forno de barro do Mestre só o que se podia enxergar era parte de cima da cúpula arredondada. O resto o gelo tinha coberto tudo, dos calanguinhos às galinhas, duras, mortas, que encontramos a um canto do galpão, como se tivessem tentado se esconder. Sei que lá, de vez em quando a neve volta, só que nunca mais com tanta força, como quando antes fazíamos bolinhas pra acertar na cabeça dos mandacarus com seus braços espinhentos abertos pra nós.
Sim, como o mundo está mudado! Agora que neva pouco é que vemos. O sertão sob a neve é um lugar que precisa ser conhecido por todo o brasileiro, pela força que tem em arrasar toda aquela riqueza com sua miséria, com sua tristeza branca.
J.A.
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Prato de gulash
Num quadro no Museu da Bratislava, Eslováquia, a mulher vê uma mesa de jantar vazia numa casa simples, provavelmente do interior. Está servido um gulash ralo com pão seco. Mais nada. Num primeiro momento, não havia visto, mas um homem, vestido com um capote preto, ocupa quase um terço da tela, à direita. Pareceu a ela que o homem estivesse mastigando pensamentos muito duros, ou estivesse, simplesmente, morto. A mulher agora vê um jarro marrom, provavelmente de barro, um cesto com frutas, um pequeno pote de manteiga e uma faca, no meio de uma poça rubra que foi se formando na toalha. Ela virou o olhar para a janela aberta. O vermelho escuro de carnes desfiadas do gulash manchava o branco da neve.
J.A.
domingo, 28 de outubro de 2012
Auto-retrato com neve
Fiz a lápis o esboço da minha cabeça, até resultar um homem de cabelos ralos e com barba apenas no queixo, de olhos arregalados e cheio de bolsas, como os de um cavalo. A boca eu representei levemente aberta. Pareceu uma foto em que os movimentos são congelados sempre antes ou depois do tempo. Quis evitar a ilusão da boca fechada, a mentira da boca fechada.
Depois, fui escondendo este mesmo esboço aos poucos com um óleo grosso, em pinceladas que ora me desfiguravam, ora traziam os pelos de uma orelha ou uma ruga da testa para a tela. Optei por um branco pálido e levemente bege em alguns pontos da face, a sugerir a cor da pele pouco exposta ao sol. Dei expressão às rugas abaixo dos lábios com mais força do que a todos os outros traços, porque queria que resultassem graves, ou desenhadas pelo escândalo.
Atrás de mim fiz surgir um campo com um caminho curvo e galhos secos brotando da neve. Ao pintar, eu tinha medo que um deles se enfiasse em meu rosto. E por isso, eu já ia usar as mãos para proteger-me, antes que a cerda do pincel se cravasse torta no olho esquerdo. A pele do rosto encrespou-se de calor por causa de uma tinta grossa a correr-me pelo queixo até a barba. Senti vergonha e tentei, em vão, que os pingos vermelhos não sujassem a neve. A cada pincelada parecia menos eu, mas era mais eu.
Saturno no laranjal
Nosso pai era um exímio descascador de laranjas. Com velocidade e precisão, ele deslizava a faca afiada entre o amarelo da casca e o branco do bagaço, sem nunca feri-las ao ponto de aparecer alguma parte da polpa. O que nos encantava era como se formava uma espiral comprida, que ia descendo de sua mão a cada volta da lâmina afiada e que só terminava quando a tampinha da outra ponta também estava feita. A casca, então, despencava, dali, inteira para a grama. A gente se acotovelava pra chegar primeiro e era sempre eu, o mais velho, que as pegava antes, para brincar. Pareciam, à minha imaginação, pequenos móbiles ou baralhos de mágico que se abriam em sanfoninhas perfumadas. De tal maneira era feito aquilo que nós - que nunca conseguíamos nem uma coisa nem outra, ou seja, nem retirar a casca intacta nem fazê-lo sem esfolar - e consequentemente sangrar - a laranja aqui e ali, ficávamos de boca aberta com a habilidade dele.
Nosso pai fazia isso em silêncio. Uma, três, cinco vezes, embaixo da laranjeira. Às vezes se esticava todo e puxava um galho para baixo para pegar as mais maduras. Nós três ficávamos ansiosos querendo saber para quem ele daria, primeiro, a laranja tão habilmente descascada. Mas ele sempre nos desapontava. Não digo que apenas no começo ele tenha gerado esse sentimento e que depois a gente tenha se acostumado. Nós sentávamos a uma pequena distância a vê-lo comendo, sozinho, cada uma daquelas laranjas. Com a já referida habilidade, nosso pai chupava-as inteiras e jogava fora os bagaços intactos, como se fossem cabeças de crianças murchas.
J.A.
Assinar:
Postagens (Atom)