quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Vidros sujos

Quando revolvo a terra do passado, os pés, da distância, cansados, na escuridão dos dias que se foram, para o nada que é a vida de todos, entrando na madrugada do tempo, passeando descalço na superfície do pátio, eu enxergo as pontas dos cacos de vidro e o veludo dos grãos de terra entre os dedos. J.A.

domingo, 18 de novembro de 2012

Jogos infantis

Era a época da neve, e depois dos seis meses de seca as nuvens pesadas não paravam de derramar carregamentos enormes de chuva solidificada por cima do Plano Piloto. Quem via de cima, de avião, como era o meu caso, se surpreendia com a beleza formada pelos desenhos dos fios pontilhados dos postes de luz na superfície branca, as geométricas formas que nasciam deste contraste e que somente serviam para ressaltar o cartesianismo dos seus construtores. Tudo branco, límpido, como as ideias claras e distintas dos arquitetos, planejadores e políticos que fazem nossa capital ser o que é. Há décadas que venho a Brasília, vindo do Recife, e sempre tento evitar a época da neve, em que o trânsito se torna infernal devido ao acúmulo de gelo cor de barro vermelho nas largas avenidas. Me incomoda sobretudo ver como sofre o povo, apesar de os nordestinos e mineiros já terem se adaptado ao clima desde a fundação de BSB por JK. Mas o frio me leva sempre a pensar nos pioneiros, nos candangos vindos do Nordeste em busca de melhorar de vida, e tendo que trocar o distante sertão, onde a seca perdura e sempre nevou pouco. Aquele era o meu caso, a recolher a última e demorada mala na esteira rolante já quase deserta, a recomeçar tudo, do nada, a vida vazia como um guardanapo de boteco sem coisa alguma escrita. Atravessando a faixa de pedestres, em busca de um táxi 3030, meu paletó em segundos ficou pontilhado do branco da neve espessa tão característica do nosso Cerrado. Tive arrepios na nuca já desacostumada. Sempre nevou pouco no Nordeste, mas das poucas vezes foi muito. Uma vez em Caruaru, quando criança, com meu pai e meus irmãos, visitamos a feira, caminhamos pelos labirintos de coisas para vender, comemos churrasco de bode e tiramos fotos como cangaceiros, com aqueles lindos capotes de couro. Criado em Recife, mas filho e neto de pernambucanos do sertão, lembro das histórias da vida no interior em épocas passadas, das brigas de família, dos assassinatos por um ou dois bodes roubados ou por uma pulaçãozinha de cerca que não deveria ter maiores consequencias - também a alegria dos sertanejos quando, depois de uma longa estiagem, finalmente, vinha a neve. Eu lembro bem do mato seco e frio, fechando meus olhos em dois riscos, com a dolorida lembrança da mulher e os filhos que eu deixei por, segundo Marisa, pura infantilidade - não esqueço das cabras só com a cabeça de fora, nos campos brancos de minha infância. Da janela do carro eu vi se aproximar a casa baixa da pensão na W3 com seu telhado quase sucumbindo ao acúmulo de gelo... Paguei o táxi, puxei as malas fazendo um trilho no branco até a porta que abriu em uma fresta. Em Caruaru, também estivemos na casa de mestre Vitalino e nos emocionamos com a simplicidade com que ele produzia seus bonecos só com neve. Tinha uma romazeira no pátio, mas ela estava seca, toda branca, e do forno de barro do Mestre só o que se podia enxergar era parte de cima da cúpula arredondada. O resto o gelo tinha coberto tudo, dos calanguinhos às galinhas, duras, mortas, que encontramos a um canto do galpão, como se tivessem tentado se esconder. Sei que lá, de vez em quando a neve volta, só que nunca mais com tanta força, como quando antes fazíamos bolinhas pra acertar na cabeça dos mandacarus com seus braços espinhentos abertos pra nós. Sim, como o mundo está mudado! Agora que neva pouco é que vemos. O sertão sob a neve é um lugar que precisa ser conhecido por todo o brasileiro, pela força que tem em arrasar toda aquela riqueza com sua miséria, com sua tristeza branca. J.A.